sexta-feira, 1 de abril de 2011

O glifosato e a criação de superervas daninhas. Entrevista especial com Dionízio Grazziero

Trinta anos depois da introdução da transgenia, a agricultura sofre com um monstro criado pela prática. O Roundup, herbicida já antigo, mas poderoso, utilizado em plantações de soja transgênica, está transformando as ervas daninhas que deveria eliminar em verdadeiras superervas, resistentes aos inseticidas disponíveis no mercado. Porém, de acordo com o engenheiro-agrônomo e pesquisador da Embrapa, Dionízio Grazziero, o glifosato, apesar de ser molécula remota, na relação com outros produtos, tem características modernas para atender questões importantes ligadas ao ambiente e à saúde. “Acho que todo o produto usado inadequadamente, mesmo sal de cozinha ou aspirina, pode criar um problema colateral. O que apareceu, depois que surgiu a soja modificada geneticamente, foram muitos questionamentos a respeito do produto, principalmente ideológicos. Na verdade, isso não tem nada a ver, pois temos que nos basear nas questões técnicas e científicas, não na ideologia”, diz.

Em entrevista, por telefone, à IHU On-Line, Grazziero destaca que, apesar da discussão girar em torno do uso dos agrotóxicos nas culturas transgênicas nos Estados Unidos, precisamos refletir sobre a posição do Brasil, que, segundo o pesquisador, tem uma cultura e um nível de informação muito desenvolvidos. “Já tive a oportunidade de estar nos Estados Unidos e acho que temos uma agricultura mais complexa. Nossa pesquisa e boa parte dos agricultores que hoje estão se dando bem adotam sistemas de produção que levam em conta rotação de culturas, de produtos, e toda essa gama de informações que a pesquisa agropecuária brasileira tem e que fornece ao agricultor. Ganhamos em um comparativo com a agricultura nos EUA”, frisa.

Dionízio Grazziero possui graduação em Agronomia pela Universidade Federal do Paraná, mestrado em Fitotecnia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e doutorado em Agronomia pela Universidade Estadual de Londrina (2003). Atualmente, é Pesquisador II da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA SOJA).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que aponta o relatório elaborado pelo comitê do Conselho Nacional de Pesquisa dos Estados Unidos sobre culturas geneticamente modificadas e o uso de pesticidas?

Dionízio Grazziero – Quando tratamos deste tema, temos que separar o problema da resistência de plantas a herbicidas ou inseticidas ou qualquer coisa parecida, porque essas plantas são geneticamente modificadas através da mão do homem, das plantas resistentes aos herbicidas. Essas são plantas que existem na natureza cuja população possui biótipos suscetíveis e outros resistentes aos herbicidas. Acontece que esses biótipos são selecionados em práticas que temos nas lavouras, como, por exemplo, o uso continuado do mesmo herbicida. Com isso, vamos matando os biótipos suscetíveis, e vão ficando os biótipos resistentes. É isso que acontece hoje em relação à manipulação genética dos materiais da natureza que são destinados a um fator qualquer, que pode ser resistência a herbicidas, doenças ou pragas.

IHU On-Line – Como e quando surgiu o Roundup?

Dionízio Grazziero – O Roundup é um herbicida que surgiu em meados dos anos 1970, portanto, podemos considerá-lo antigo. Quando surgiu, foi um produto que entrou no segmento de dessecação de plantas daninhas. Foi pra isso que ele foi desenvolvido naquela época. Assim ele continuou sendo considerado até a década de 1990. Em lavouras frutíferas, ele era utilizado nas entrelinhas, com uso de pós-emergência para eliminar ervas daninhas. No caso da soja, do trigo e do milho, ele era utilizado no período entre as culturas. Hoje, mais de 150 espécies de plantas e ervas daninhas estão registradas para controle por Roundup. Na década de 1970, ele custava muito caro, lembro que o preço girava em torno de 25 dólares o litro. E era um dólar muito mais valorizado do que o atual. O tempo foi passando, e o Roundup passou a ser cada vez mais utilizado nas lavouras de milho, trigo, soja, frutíferas e café. Até que por volta dos anos 1990, a empresa modificou geneticamente as plantas de soja para que pudessem resistir ao uso desse produto. Antes, ele era um produto não seletivo. Depois, com o surgimento das plantas geneticamente modificadas, esse produto passou a ser utilizado também na cultura da soja.

IHU On-Line – Que tipo de superervas daninhas o herbicida Roundup anda criando?

Dionízio Grazziero – Os EUA já são conhecedores do problema da resistência há muitos anos, mas nós no Brasil começamos a ter esse problema no final dos anos 1980. E aí nós, pesquisadores, começamos a fazer programas de prevenção e alerta. Só a partir de 2004, oficialmente, a soja resistente ao Roundup começou a ser usada. Mas, no Rio Grande do Sul e, depois, em parte do Paraná, começou a entrar muita semente contrabandeada da Argentina, e já se usava a soja modificada a partir de 1998 com muita frequência, porque, do ponto de vista técnico, ele é um produto que elimina a planta daninha com mais facilidade do que os herbicidas normais daquela época.

Podemos trocar, aliás, o Roundup por glifosato. Isso porque o Roundup é uma marca comercial. Há diferentes formulações de herbicidas com a marca Roundup, mas existem outros produtos que também usam o glifosato. O Roundup-ready, por exemplo, é uma formulação especial, mas não deixa de ser glifosato. O glifosato é um produto técnico, e o mais comum é aquele criado na década de 1970 e que até hoje é utilizado. Depois foram feitas melhoras nele, e uma delas é o Roundup-ready, que é permitido utilizar na soja transgênica.

Passamos a chamar de resistentes um produto que matava uma espécie e deixou de fazer isso, deste modo, a planta resistente passou a crescer dentro do campo. Assim surgiu a soja transgênica. Ela ainda não estava oficialmente liberada, principalmente no RS. Quando o pessoal começou a perceber o efeito que esse glifosato fazia, todos procuraram utilizar a soja transgênica, pois tinha maior controle da planta daninha.

Hoje, o problema da planta daninha está ligado ao glifosato, não necessariamente à soja transgênica. Pois, na verdade, o que temos, no Brasil, como o problema da resistência buva, que encontramos bastante no Rio Grande do Sul. Até existem relatos disso, como o do amendoim bravo resistente ao glifosato, mas ainda é uma questão de baixa resistência. Essas espécies de plantas se estabelecem no período de entressafra, uma vez que têm a capacidade de multiplicação e estabelecimento muito grande, elas foram, então, ganhando espaço. Até porque, muitos biótipos no meio dessas plantas já eram resistentes ao glifosato, por uma questão de seleção natural. Os indivíduos mais aptos sobrevivem, já dizia Darwin. Isso, de certa forma, também vale para o problema dos Estados Unidos, mas é preferível tratarmos de nossos problemas aqui no país. Os agricultores americanos, tais quais os brasileiros, acabam usando um determinado tipo de produto, mas as ervas têm tipos variados. Eles têm muitos problemas com o Caruru e a buva.  Porém, a causa do problema, que foi o uso indiscriminado do mesmo mecanismo de ação, acabou elevando o problema da seleção das plantas resistentes.

Interagimos muito com o pessoal da Embrapa do Rio Grande do Sul, pois temos um problema muito semelhante no Paraná, embora o estado tenha algumas mudanças. Nós utilizamos muito milho safrinha, o que facilita a germinação dessas plantas resistentes. Nossos problemas ligados ao glifosato são, principalmente, de plantas que estão na entressafra. Temos outra espécie que está surgindo, que existe muito no Paraguai, através de sementes carregadas pelo vento e que também começou a criar problemas no Paraná. Esta planta, que chamamos de capim amargoso ou digitaria insularis, também pode acontecer dentro da cultura, mas é característica da entressafra.

A solução existe. Normalmente quando se tem problema de resistência, o agricultor pode estar certo que também terá problemas técnicos e de custos. Se havia um produto que controlava uma erva importante e que, de repente, não controla mais, provavelmente vai se continuar usando esse produto, já que ele controla um grande número de espécies, mas terá que ser colocado outro produto para poder controlar aquela espécie. Isso, além de dificuldades técnicas, também representa aumento no custo de produção. Uma dor de cabeça muito grande para nós técnicos e para os agricultores.

É importante lembrar também que o problema não está somente no Rio Grande do Sul e no Paraná, está no Brasil inteiro. Porém, os problemas no Brasil central ainda são mais fortes, em relação a esses inibidores de produtos convencionais, como a ALS e a ACCase. Esse problema está ligado a uma prática que não é recomendada. Abandonamos, na agricultura como um todo, sem apontar culpados, os conceitos básicos de manejo de plantas daninhas e de sistemas de produção, isso inclui rotação de cultura, uso de coberturas mortas e uma agricultura mais diversificada no sentido de diminuir os problemas de doenças, de pragas e plantas daninhas. Até por uma questão econômica, seguimos por uma monocultura ou um padrão de cultura, no qual negligenciamos os sistemas de produção. Todas essas coberturas nos ajudam a controlar a planta daninha e em todas as etapas de controle de doenças. Infelizmente, abandonamos esses conceitos.

IHU On-Line – Foi o herbicida que criou a resistência?

Dionízio Grazziero – Não, o herbicida não causa a resistência. A resistência não é causada, ela está aí, são biótipos que já existem e têm a capacidade genética de suportar esses produtos. O herbicida não causou, ele selecionou. Por trás dele, também está o homem. O problema é grave e traz uma série de consequências técnicas e econômicas, mas ainda temos a solução. É possível convivermos com esse problema, porém, é preciso estar atento porque, se continuarmos com essa agricultura de monocultura que temos hoje, ficará cada vez mais complicado. Nessa agricultura, muitas vezes, não atentamos para detalhes pequenos. Outro dia estive em Luís Eduardo Magalhães, na Bahia, e um colega engenheiro agrônomo falou que um agricultor tinha levado a máquina, não a limpou e introduziu buva resistente ao glifosato nesta região. São esses detalhes simples que têm um reflexo técnico e econômico fundamental. Essas ervas não são super-resistentes, são resistentes por um processo natural, mas nós homens acabamos dando a chance de serem selecionadas.

IHU On-Line – Em relação a outros herbicidas, o glifosato é mais ou menos prejudicial?

Dionízio Grazziero – O glifosato é uma molécula antiga e tem características importantes ligadas às questões do ambiente. Acho que todo o produto usado inadequadamente, mesmo sal de cozinha ou aspirina, pode criar um problema colateral.  Eu, que comecei a trabalhar na Embrapa em 1975, acompanhei a fase que tínhamos produtos altamente tóxicos, prejudiciais ao meio ambiente. Percebi que houve uma evolução muito grande na indústria, de lá para cá. Mesmo o herbicida sendo um produto lá da década de 1970, ele tem características importantes em relação ao ambiente e ao homem. O que apareceu, depois que surgiu a soja modificada geneticamente, foram muitos questionamentos a respeito do produto, inclusive ideológicos. Na verdade, isso não tem nada a ver, pois temos que nos basear nas questões técnicas e científicas, não na ideologia. Em relação aos outros produtos, o glifosato é um produto que tem características modernas, de atender questões importantes ligadas ao ambiente e a saúde.

IHU On-Line – Como o senhor vê a questão da proibição do glifosato?

Dionízio Grazziero – Já enfrentei diversas situações, e, como pesquisador, com 35 anos de trabalho nesta área, baseio-me nas questões técnicas. Acho que devemos ter dados concretos para poder falar, devemos nos basear em situações reais e técnicas. Entendemos muito dos problemas ligados à agricultura, outros segmentos da ciência entendem muito dos problemas relacionados com o meio ambiente, outro entende a questão da saúde, e assim por diante. Eu, particularmente já tive a oportunidade de ser um consultor de ministérios, onde pude manifestar minha opinião junto a outros consultores de meio ambiente, saúde e agricultura, e discuti a questão da transgenia e do uso do glifosato. Limito-me às questões agronômicas. Deste ponto de vista, a proibição do glifosato deve ser provada, já que não existe uma razão para isso. Em segundo lugar, será um desastre se isso acontecer. Precisamos entender o que acontece no campo. Se algum problema grave, como foi levantado várias vezes, for comprovado dentro de metodologias que são aceitas internacionalmente, deve se discutir e se aceitar que seja um problema, mesmo que este seja utilizado dentro dos padrões recomendados. Mas, até lá, proibir por proibir causará um impacto violento ao agricultor, à agricultura, ao agronegócio e ao sistema de produção.

IHU On-Line – Sobre a situação dos Estados Unidos em relação ao uso dos agrotóxicos nas culturas transgênicas, como o senhor analisa e compara com a situação atual do Brasil?

Dionízio Grazziero – Já tive a oportunidade de estar nos Estados Unidos, em seminários que realizamos sobre o tema da resistência no Brasil. Acho que temos uma agricultura mais complexa. Os EUA têm períodos bem definidos, por causa das nevascas, quando a agricultura zera. Embora existam plantas como a buva, por exemplo, que desaparecem, mas rebrotam quando o tempo esquenta. Temos uma filosofia que deve ser engrandecida. Nossa pesquisa e boa parte dos agricultores que hoje estão se dando bem, adotam sistemas de produção que levam em conta a rotação de culturas, de produtos, e toda essa gama de informações que a pesquisa agropecuária brasileira tem e que fornece ao agricultor. Por exemplo, a buva, planta de linha resistente ao glifosato, é de difícil controle, mas tem solução quando integramos métodos de controle. Se nós deixarmos uma área em pozil e quisermos controlar no momento de fazer o plantio da soja, teremos muito problema. Gastaríamos muito dinheiro e não iríamos controlar. Mas se fizermos isso integrado com o plantio de aveia ou milho, manejando adequadamente dentro das indicações feitas pela pesquisa, é possível controlar sem problemas, sem convivermos com essas espécies.

No início, quando apareceram essas espécies, tivemos perdas incríveis de rendimento. Essas plantas vieram das entressafras, como a buva, que nasce entre os meses de junho e julho, que os agricultores achavam que tinham controlado, mas que reaparecia na cultura da soja. Nestas condições, temos diversas alternativas. Temos técnicas e poderíamos fazer isso no Brasil com muita facilidade, coisa que normalmente os agricultores nos EUA têm muito mais dificuldade, até por uma questão de clima. Percebemos que temos uma cultura mais ligada à utilização de sistemas de produção que contemplem métodos de controle e rotação de cultura. Mas, é claro que entendemos o problema do agricultor, das políticas agrícolas que não o estimulam na questão técnica. Temos uma cultura e um nível de informação muito desenvolvidos, e ganhamos em um comparativo com a agricultura nos EUA. 

Fonte:

http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=32327 

13 metais pesados, 13 solventes, 22 agrotóxicos e 6 desinfetantes na água que você bebe

“Na safra de 2009 para 2010, o Brasil usou 900 milhões, quase 1 bilhão de litros de agrotóxicos. É o maior consumidor do mundo. Aonde vai parar esse volume todo? É isso o que temos pesquisado. Estudamos a contaminação das águas e para isso a gente trabalha com bacias, pois as nascentes dos rios dessas bacias estão dentro das plantações de soja”, afirma o médico e doutor de toxicologia, Wanderlei Pignati, em entrevista a Manuela Azenha, publicada no sítio  Vi o Mundo, 25-03-2011.
Há cinco anos, Lucas do Rio Verde, município de Mato Grosso, foi vítima de um acidente ampliado de contaminação tóxica por pulverização aérea. Wanderlei Pignati, médico e doutor na área de toxicologia, fez parte da equipe de perícia no local. Apesar de inconclusiva, ela revelava índices preocupantes de contaminação.

Em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Pignati passou então a dirigir suas pesquisas à região Centro-Oeste.  Professor na Universidade Federal do Mato Grosso, há dez anos ele estuda os impactos do agronegócio na saúde coletiva. É o estado onde mais se aplica agrotóxicos e fertilizantes químicos no Brasil, país campeão no consumo mundial dessas substâncias. Pignati alerta que três grandes bacias hidrográficas se localizam no Mato Grosso,  portanto quando se mexe com agrotóxico no estado, a contaminação da água produz impacto enorme.

O projeto de pesquisa coordenado por Pignati tem o compromisso de levar às populações afetadas os dados levantados e os diagnósticos. Para ele, é fundamental promover um movimento social de vigilância sanitária e ambiental que envolva não só entidades do governo, mas a sociedade civil organizada e participativa.

Diferentemente da União Européia, aqui a legislação não acompanha a produção de conhecimento científico acerca do tema. Segundo Pignati, a legislação nacional, permissiva demais, limita a poluição das indústrias urbanas e rurais, enquanto paralelamente a legaliza.

As portarias de potabilidade da água, por exemplo, ampliaram cada vez mais o limite de resíduos tóxicos na água que bebemos. E na revisão da portaria que está prestes a acontecer, pretende-se ampliar ainda mais.

Pignati condena a campanha nacional em prol do álcool e do biodiesel, energias que considera altamente prejudiciais e poluentes para o país que as produz: “Se engendrou toda uma campanha para dizer que o biodiesel viria da mamona, do girassol, de produtos que incentivariam a agricultura familiar, mas é mentira, vem quase tudo do óleo de soja”.

Assim como a pesquisadora cearense Raquel Rigotto, Pignati também questiona a confiabilidade do “uso seguro dos agrotóxicos”, um aparato de normas e procedimentos que mesmo se contasse com estrutura para seu funcionamento ideal, ainda assim não garantiria o manejo absolutamente seguro dos venenos.

Para Pignati, a falta de investimento na vigilância à saúde e ao ambiente no Brasil é uma questão de prioridade: “Tem muito dinheiro para vigilância, mas não para o homem. Existe um verdadeiro SUS que cuida de soja e gado, produtos para exportação”.

Eis a entrevista.

Desde o acidente de Lucas do Rio Verde, o que o senhor vem pesquisando?

Na verdade, faz mais de dez anos que pesquisamos os impactos do agronegócio ao homem e ao ambiente.

Na safra de 2009 pra 2010, Mato Grosso usou 105 milhões de litros de agrotóxico. O Brasil usou 900 milhões, quase 1 bilhão de litros de agrotóxicos. É o maior consumidor do mundo. E Lucas do Rio Verde usou 5 milhões em 2009. Aonde vai parar esse volume todo? É isso o que temos pesquisado.

Estudamos a contaminação das águas e para isso a gente trabalha com bacias. No Mato Grosso, você tem várias bacias. A bacia do Pantanal, que é do rio Paraguai e nasce aqui no estado. Tem a bacia do Araguaia, uma de suas grandes nascentes é o rio Morto, aqui em Campo Verde. E a bacia do Amazonas em Lucas do Rio Verde, cujas nascentes são os rios Verde e Teles Pires.

Portanto, quando você mexe com agrotóxico e fertilizante químico no Mato Grosso, está mexendo com as três grandes bacias do Brasil: a do Araguaia, a Amazônica e a do Pantanal. A bacia do Pantanal é uma questão mais séria ainda porque ela vai atingir outros países, como Paraguai, Argentina e Uruguai. Tem três grandes bacias e três biomas no estado: o pantanal, o cerrado e a floresta.

As nascentes dos rios dessas bacias estão dentro das plantações de soja. É o mesmo caso da bacia do Xingu, o maior parque índigena do Brasil. As suas nascentes estão nos municípios em volta, onde está cheio de plantação de soja, de milho e algodão. Queriam implantar mais uma série de usinas de açúcar e álcool no entorno do pantanal, mas veio um decreto do presidente proibindo. O agronegócio não respeita essa questão das bacias e nem das nascentes dos rios. Essa problemática é o que estudamos.

Em Lucas do Rio Verde, em 2006, houve um acidente agudo que saiu na mídia. Na mídia daqui, saiu pouco porque é muito comprometida com quem a paga, que na época era o governador Blairo Maggi. Ele tem a mídia sob controle.  Na época, estavam dissecando soja em torno das plantações, que se estendem até a beira da cidade.  Planta-se e pulveriza-se com trator ou com avião. Em Lucas, pulverizava-se a soja transgênica, que é muito pior para o ambiente do que a soja normal.

A maioria da soja já é transgênica?

No Mato Grosso, 80% dessa última safra já é. No Rio Grande do Sul, é 95%. Agora está entrando muito milho transgênico também. Aqui, tira-se a soja e planta-se o milho. São duas safras grandes de plantação aqui.

Os transgênicos exigem mais agrotóxicos?

A soja transgênica sim, porque não é resistente à praga, ela é resistente a um agrotóxico, que é o glifosato. Esse é um agrotóxico bastante usado, que a Monsanto patenteou com o nome de Roundup. Na soja comum, você não pode usar o glifosato depois de ela ter nascido, porque elemata o mato e a soja também. Mata minhoca, fungo, bactérias sensíveis a ele. Por biotecnologia, pegaram uma bactéria resistente ao glifosato e injetaram o DNA dessa bactéria no DNA da soja.

Então, o glifosato só era usado antes da soja nascer para matar as ervas daninhas. Agora, como é resistente, aplica-se o glifosato a cada quinze dias e o uso dele foi multiplicado na soja. Depois, precisa madurar e dissecar a soja rapidamente para plantar o milho.  No meio natural, demora um mês e pouco. Com esse dissecante, em três dias a soja madura, seca e a máquina já pode entrar na plantação. Isso para aproveitar as chuvas da segunda safra e plantar o milho. Mas para dissecar agora já não se pode usar o glifosato, porque a soja é resistente a ele. Então usa-se outro tipo de agrotóxico, o diquat ou o paraquat, classificado como classe 1, extremamente tóxico. O glifosato é classe 4, tóxico também, mas pouco. O paraquat é proibido na
União Européia.

Além de multiplicar o uso do glifosato, você agora usa um agrotóxico extremamente tóxico como secante [da soja]. E não é toxico só para o humano, ele é altamente perigoso para o ambiente, porque mata tudo quanto é coisa, abelha, pássaro. E no  caso de Lucas, eles estavam dissecando a soja de avião, usando diquat e paraquat em torno da cidade.

Uma nuvem foi para dentro da cidade e queimou todas as plantas medicinais. Tinha um horto de plantas medicinais com mais de 100 canteiros que abastecia várias cidades. Foram queimadas as hortaliças e plantas ornamentais da cidade também. Deu um surto agudo de vômito, diarréia e alergia de pele em crianças e idosos. Os médicos classificaram como rotavirose.

Nós da Universidade Federal do Mato Grosso fomos chamados pelo Ministério Público de Lucas do Rio Verde e do estado para fazer uma perícia. A gente viu que a coisa era bastante séria, um acidente sério que acontece todo dia. É a chamada deriva de agrotóxico. É previsível, porque os agronômos sabem que tem vento, o vento não está parado. Então, você passa agrotóxico perto da cidade e o vento vai levá-lo para lá.
 
O pessoal se esconde por trás da palavra “deriva” para dizer que aquilo foi um acidente, mas é um acontecimento prevísivel. Passar um agrotóxico extremamente tóxico a partir de um avião é mais previsível ainda. Mesmo quando o agrotóxico já está no solo, ele depois se  evapora. Jogar veneno é um ataque quase de guerra. Não se trata de pesticida ou defensivo agrícola. Na legislação, está como agrotóxico. O trabalhador que está passando o agrotóxico pode estar protegido com todos os EPI (equipamento de proteção individual), mas e o ambiente? Vai colocar EPI nas outras plantas? Querem matar os insetos, o fungo, a erva daninha. Então teria de  colocar EPI nos outros animais, como no peixe e no cavalo.

O uso seguro do agrotóxico é altamente questionável. Pode ser seguro para o trabalhador, isso se ele usar todos os EPI. Mesmo assim, tem toda uma questão da eficiência e eficácia desses EPI. Sou também médico do trabalho e a gente vê isso. A eficiência e eficácia do EPI é de 90%, se [os trabalhadores] usarem máscara com o filtro químico adequado. E o resto do vestimento? Agrotóxico penetra até pelo olho! Pela mucosa, pela pele. Então teria que ter até um cilindro de oxigênio para respirar igual a um astronauta. O filtro pega 80% ou 90% dos tipos de agrotóxico. Hoje, você tem mais de 600 tipos de princípios ativos e são 1.500 tipos de produtos formulados. Tem agrotóxicos novos com moléculas muito pequenas que passam pelo filtro. Então, com toda a proteção ideal, você protege o trabalhador. Mas, e o ambiente?

Os resíduos vão sair na água, depois na chuva, vão ficar no ar, vão para o lençol freático. A gente viu isso na cidade, depois fizemos uma perícia, mas ficou inconclusiva. Por isso, resolvemos fazer uma pesquisa junto com a Fiocruz. Ao mesmo tempo, estava-se articulando pesquisas em outros estados aqui da região Centro-Oeste. O nome da nossa pesquisa é “Avaliação do risco à saúde humana decorrente do uso do agrotóxico na agricultura e pecuária na região Centro-Oeste”. A gente pegou dois municípios e um município-controle, em que quase não se usa agrotóxico.

As pesquisas em Lucas do Rio Verde já estão bastante avançadas?

Já. Talvez a análise do leite materno tenha sido um dos últimos tópicos, mas a gente continua com sapos e com peixes.  Em outros munícipios, a gente não fez o teste do leite, por exemplo. Mas isso porque Lucas é o maior produtor de milho no estado do Mato Grosso, terceiro em produção de soja. Então achamos que era necessário o trabalho. Analisamos o leite materno de 62 mulheres em Lucas, 20% das nutrizes amamentando no ano passado. Todas as amostras revelaram algum agrotóxico. Mas o que mais deu nessas amostras é um derivado de DDT, que se usava na agicultura até 1985 e na saúde pública, até 1998, para combater a malária.

Só que ele é cumulativo, entra na gordura e não sai mais. O segundo que mais deu foi endossulfam, 40%. É um clorado proibido faz 20 anos na União Européia. E por ser um clorado também fica acumulado na gordura. Retirar o leite é uma maneira de analisar os resíduos de agrotóxico na gordura, menos agressiva que uma biópsia. Quando a mulher fabrica o leite, as gorduras mais antigas vão para o leite.

Depois desse acidente, despertou na população um movimento de querer saber o que está acontecendo.

E depois que a perícia averigua a causa do acidente, o que acontece?

Algumas coisas você comprova na hora, outras demoram anos. Fazemos análise de resíduo de agrotóxico na água, no solo, na chuva, no leite.

Para avaliar o leite, a gente começou há três anos a desenvolver uma técnica para analisar dez agrotóxicos de uma só vez. Uma substância isolada é custosa em termos de dinheiro e tempo e, analisando dez substâncias, a chance de encontrar  resíduos é maior. Das amostras, 100% deram pelo menos um tipo de agrotóxico. Pegamos os 27 tipos de agrotóxicos mais consumidos na região do Mato Grosso e fizemos as análises. Dentre os 27 mais consumidos, você não tem o glifosato, por exemplo, que é o herbicida mais usado no país, porque não tínhamos tecnologia no Brasil para analisá-lo. Hoje tem, mas é muito cara. Os únicos que fazem esse exame são meia dúzia de laboratórios.


Periodicamente a gente levanta dados, tem as dissertações de alunos. No nosso grupo de estudos, tem uma aluna que estuda resíduo de agrotóxico em leite, outra que estudou agrotóxicos e câncer. Onde tem a maior incidência de câncer aqui no MT? Justamente nas regiões  produtoras do estado. Em torno de
Sinop: Lucas do Rio Verde, Sorriso, Nova Mutum, que são os municípios no entorno. A região de Tangará da Serra, Sapezal, Campos Novos dos Parecis, que são os grandes produtores de soja. E a região de Rondonópolis, Primavera, Campo Verde, Itiquira, onde se produz muito algodão.

São as grandes regiões produtoras onde tem maior incidência de câncer, má formação, intoxicação aguda. Você tem 80% a 90% desmatado nesses lugares. Se está desmatado, é porque está se plantando soja, milho e algodão até a beira das casas. Mato Grosso produz 50% do algodão do Brasil e é justamente a cultura que mais usa agrotóxico. No Mato Grosso, em média, um hectare de soja usa dez litros de agrotóxico: herbicida, inseticida, funigicida e o dissecante. O milho usa seis litros. A cana, quatro litros e o algodão, vinte.


Como a gente tem grande produção de soja — são seis mihões de hectares de soja no Mato Grosso –, dá 60 mihões de litros de agrotóxico na soja. Obtemos esses números no INDEA [Instituto de Defesa Agropecuária do Estado de Mato Grosso], onde todo receituário agronômico e uso de agrotóxico é registrado. Na maioria dos estados não tem, mas deveria haver esse banco de dados. São 40 municípios que consomem 80% desses 100 milhões de litros de agrotóxicos.


No geral, ocorre uma contaminação, inclusive da chuva, que tem muito agrotóxico presente. Ele evapora,  depois desce, principalmente no período de chuva, que é quando mais se usa agrotóxico. Na entressafra, chove pouquíssimo. Então, quase ninguém está plantando. O agrotóxico evapora, desce e vai para toda região, não só para aquele município onde foi aplicado. Vai para o ar também. Se você está pulverizando a alguns metros de uma escola, esse ar vai para os alunos, para os professores. E os poços artesianos a alguns metros de uma grande plantação de soja, milho ou algodão também se contaminam.


Com o tempo, o agrotóxico vai penetrando no solo e sai no poço, mesmo que esteja a 50, 60, 70 metros de profundidade. Isso é o que a gente chama de poço semi artesiano e a maioria é assim. Uma região de cerrado tem pouco abastecimento por córrego, é mais por poço artesiano que as cidades e comunidades rurais se abastecem.


Encaminhamos o relatório dessa pesquisa para o
CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico]. Lá em Lucas, a gente já fez uma audiência pública na Câmara Municipal, onde apresentamos esses dados. Estavam presentes vários professores, vereadores, os secretários da saúde, educação e agricultura. As Secretaria da Agricultura e do Meio Ambiente são juntas em 140 dos 141 municípios de Mato Grosso. O grande poluidor do meio ambiente — a agricultura químico-dependente, que desmata e usa muito agrotóxico e fertilizante químico –  tem o mesmo gestor e fiscalizador que o meio ambiente. A maioria dos secretários da agricultura é de fazendeiros, eles não vão denunciar a poluição dos colegas deles. Aqui no estado, a única exceção é Cuiabá, mas é onde não tem agricultura.

O MP [Ministério Público] está elaborando um termo de ajuste de conduta. Em Campo Verde  também teve uma audiência pública para estabelecer uma legislação com os dados parciais que a gente já tinha e fazer uma legislação que determinasse a distância mínima para pulverização no entorno da cidade. O promotor recebeu o relatório e está preparando um ajuste de conduta também.


Esses lugares são semelhantes entre si, porque são dos 40 municípios do estado que consomem 80% dos agrotóxicos, dos fertilizantes químicos e das sementes. A dinâmica é parecida nesses 40 municípios. Desmata-se e pulveriza-se até a beira do córrego, no entorno dele e nas nascentes. As comunidades rurais e a própria cidade ficam ilhadas no meio das plantações.


No pasto, usa-se muito herbicida e inseticida e isso vai entrar no ciclo da carne. Os outros suínos e as aves são contaminados pela soja e pelo milho, porque a ração desses animais é à base desses produtos. Dessa maneira, os resíduos do agrotóxicos vão parar nos alimentos.


O Ministério da Saúde  analisou 20 tipos de alimentos e 30% pelo menos deram algum tipo de agrotóxico. A maioria dos agrotóxicos analisados — foram mais de cem –  é  autorizado aqui no Brasil.


Uma boa parte, uns 14, está sob revisão. Dois ou três foram proibidos e o endossulfam, bastante usado aqui e muito tóxico, vai ser proibido a partir de julho de 2013.


Metamidofois
, outro fosforado, que dá muito problema no sistema nervoso, psiquiátrico, até doença de Parkinson, vai ser proibido a partir de julho do ano que vem. Esses são proibidos há vinte anos na União Europeia e aqui quando é proibido, é só partir de 2013. Sabe-se que o metamidofós é cancerígeno, neurotóxico e mesmo assim só será proibido a partir de julho do ano que vem.

Já existe conhecimento científico suficiente para uma política mais incisiva? Por que é tão permissiva a legislação brasileira em relação aos agrotóxicos?
Você tem a lei do agrotóxico, a Lei 7.802 de 1989, depois regulamentada pelo decreto 4074, de 2002.  Mas existem alguns furos. Primeiro, quem está fiscalizando? É um volume imenso de agrotóxicos, todos permitidos no Brasil. Teria de haver alguns critérios. E os critérios que existem, como a distância mínima de 500 metros de nascente de água, casas, criação de animais, ninguém respeita.

Mas os critérios no Brasil são diferentes? Por que os proibidos lá fora, aqui são permitidos?
São diferentes. Os mais tóxicos são proibidos lá e aqui permitidos. Isso por causa da nossa dependência econômica. Quem governa o Brasil? Aqui, no Mato Grosso, os grandes governantes são fazendeiros, assim como no Goiás. Falo de governantes não só do executivo, mas do legislativo também. Deputados estaduais, os veradores, uma boa parte é fazendeiro e comprometido com esse modelo de desenvolvimento.

Não querem mudar agora o Código Florestal para devastar mais ainda? Aqui, no Mato Grosso, 80% estão devastados por quê? Na região Amazônica também. Segundo a lei, teria que desmatar 20% e preservar 80% nas áreas de floresta, de preservação permanente. No cerrado, você pode desmatar 70% e deixar 30%.


Os agrotóxicos são fabricados lá fora e vêm para o Brasil. O compromisso dos empresários que vendem esses produtos não é com a saúde. E o grande fazendeiro quer saber de matar o que ele chama de praga.


A gente tem que inverter isso, quem é a praga que começou a desmatar, depois a usar um monte de veneno? Dá para produzir sem o veneno? Dá, é o modelo da agroecologia. Entra no modelo dos orgânicos.


O maior produtor de açúcar e álcool orgânico é o Brasil. É produzido numa cidade do interior de São Paulo,
Sertãozinho. São 16 mil hectares de cana num processo industrial semelhante ao outro, tem máquina cortando mas sem usar uma gota de fertilizante químico ou agrotóxico. Começou 30 anos atrás, selecionando as sementes, as mudas de cana resistentes. Montou-se um laboratório próprio, com biólogo, engenheiro, para eles mesmos selecionarem ao invés de comprar sementes já selecionadas.

Diferentemente dos outros produtores, que dependem da meia dúzia de empresas que dominam toda indústria de semente de soja, milho, algodão, feijao, arroz. Essas empresas não fazem seleção para não usar agrotóxico ou fertilizante químico, se não como vai ficar a indústria deles, de fertilizante e agrotóxico? O mesmo dono da patente da semente é o dono do agrotóxico e do fertilizante químico. E mais ainda: é o mesmo que produz o medicamento, da indústria química.


Hoje, uma boa parte de medicação que a gente usa para tratar pessoas que tiveram infecção aguda, câncer ou uma outra doença neurológica, psiquiátrica, é produzido por quem produz fertilizante químico e agrotóxico. É um complexo químico-industrial, estão todos ligados.


É um tanto esquizofrênico para essa sociedade que se diz desenvolvida. Tem que ser outro modelo de desenvolvimento, isso porque eu estou discutindo a área agrícola sem entrar na indústria urbana, que é semelhante.


Existe uma legislação para limitar a poluição e uma legislação paralela para legalizá-la.  Os jornalistas perguntam quanto que é o limite máximo permitido de agrotóxico no litro d’água? A gente já chegou a esse grau de não questionamento, de não se indignar, de acatar isso.


Se você pegar a Portaria 518 de 2004, do Ministério da Saúde, que chama-se
Portaria da Potabilidade da Água, dá pra ver o que é permitido ter na água hoje. A gente fala muito de coliformes  fecais. Mas e os agrotóxicos são permitidos? E os solventes? E metais pesados? Todos eles são permitidos.

O litro de água que você bebe hoje, de acordo com essa portaria, pode ter 13 tipos de metais pesados, 13 tipos de solventes, 22 tipos de agrotóxicos diferentes e 6 tipos de desinfetantes. Hoje, a questão mais importante na contaminação da água não é mais a bactéria, mas toda essa contaminação química.


Essas portarias de potabilidade da água aumentaram cada vez mais o limite de contaminação. Por quê?


Se você comparar essa portaria com a da Uniao Européia, vai ver que aqui tem 22 tipos de agrotóxicos enquanto lá pode ter, no máximo, cinco. Os limites lá são ínfimos.


Enquanto lá você pode ter 20 microgramas de glifosato, aqui pode ter 500 microgramas. E ainda querem subir para mais. A primeira portaria, de 1977, podia ter 12 agrotóxicos, 10 metais pesados, zero solventes e zero derivados de desinfetantes. A seguinte já é de 1990.  A vigente é de 2004. Isso acompanha o crescimento da população urbana e rural, que se  reflete na água. Os agrotóxicos são a poluição rural. Não se faz um tratamento adequado da água, só tiram os coliformes, botam cloro e fazem um tratamento primário. Esse tratamento, de 100 anos atrás, é feito por decantação.


Você coloca o produto, ele decanta, vai todo para o fundo, aí você aspira. É como limpar uma piscina. E os produtos químicos que ficaram dissolvidos na água? Quem usa muito solvente são as indústrias urbanas. Metais pesados são usadas nas indústrias urbanas e na agricultura também, junto com os fertilizantes químicos. Aquilo se acumula durante anos e sai na água. A portaria da potabilidade da água reflete a legalização da poluição urbana e rural.


Como o desenvolvimento urbano e rural foi crescendo, as portarias foram permitindo cada vez mais?


Sim, porque essas substâncias vão sendo usadas cada vez mais. Depois, na revisão da portaria, já querem aumentar o limite. Querem tirar alguns agrotóxicos antigos e colocar outros novos. É uma sociedade sem muita informação e sem muita indignação. A grande mídia fala de limite máximo de resíduo como se fosse uma banalidade. Tudo isso é permitido na água? O leite da vaca tem um monte de coisa permitida também, agrotóxicos que são muito usados no pasto e vão parar na carne e no leite.


Agora, quando é carne para exportar e existe esse limite de resíduo, aí fazemos as análises. Às vezes, volta soja e carne porque não foram aprovados pelo nível de resíduo de lá [do país importador]. Alguém já viu incinerar aqueles vários navios de soja que voltaram? Depois que o produto saiu da indústria e foi para o supermercado daqui, seja carne, frango, soja, milho, quem fiscaliza?


A vigilância sanitária do município ou do estado tem que ir fazer as análises, e não se faz isso de maneira rotineira. Quando fazem análise de algum produto, analisam o coliforme fecal. Vêem se aquele produto entrou em putrefação. Mas vai fazer análise de resíduo de agrotóxico, que é cara?


Não fazem as análises por falta de estrutura?
Por falta de estrutura, mas não tem estrutura porque não tem investimento. Mas para exportar não fazem as análises? E para cuidar da saúde do boi e da soja? Existe muito dinheiro para a vigilância à saúde no Brasil, mas não para o homem. Existe a vigilância do boi e da soja. O SUS do boi e da soja.  A vigilância do boi e da soja tem escritórios do governo do estado nos 142 municípios, com agrônomo, veterinário. Tem mais de 20 carros. Quem é que faz toda a estrutura para vacinar 27 milhões de cabeças de gado do Mato Grosso?

Fazem campanha, o veterinário vai todo mês na fazenda ver se vacinou ou não contra febre aftosa. O fazendeiro compra a vacina, tudo bem, que é o custo menor. Aqui,no Mato Grosso, você tem 500 mil crianças abaixo de cinco anos e qual é a cobertura contra sarampo, hepatite, meningite, tuberculose? Vacinou quantos por cento das crianças? As 27 milhões de cabeças [de gado] estão todas vacinadas, do contrário não são exportadas. A infraestrutura é com o dinheiro público, mas os bois são de dinheiro privado. Com a soja, é a mesma coisa. Tem toda uma estrutura para não espalhar a ferrugem, que é um fungo da soja. Os agrônomos da Saúde tiram amostra, orientam os fazendeiros, fazem análise. O boi para exportar recebe cuidado, mas o que fica aqui e vai parar no supermercado, não.


O Mato Grosso é o maior produtor agrícola e maior consumidor de agrotóxico do país. O senhor acha que a alta produtividade de Mato Grosso depende do agrotóxico?


As duas coisas estão ligadas. Cada vez se consome mais. Há dez anos, o hectare de soja consumia 8 litros e não 10 litros de agrotóxico, como hoje. Porque hoje você tem uma série de plantas já resistentes aos vários tipos de agrotóxicos. Então, primeiro você usa mais para ver se resolve.Depois, você troca por outro mais tóxico.


Mas é viável eliminar os agrotóxicos?
Se você partir do sistema e começar a substituir a semente, sair desse domínio da semente, lógico que é viável, em grande escala. Como acontece em Sertãozinho, o maior produtor de açúcar orgânico do mundo. Eles exportam 99,9% dos produtos para União Européia. Hoje em dia a UE está preferindo nossos produtos orgânicos. Hoje tem algumas fazendas produzindo soja orgânica ou mesmo a soja tradicional, não transgênica, que já consome menos agrotóxico.

A UE prefere a soja não transgênica não só por causa do gene da bactéria que foi colocado junto com o da soja, mas também por causa dos resíduos do agrotóxico. Tem um nível de glifosato maior e depois, para dissecar, é usado o diquat ou paraquat, que é proibido na UE. Na China, na Índia, nos países do Oriente Médio e da África, esses produtos entram. Vamos levar a poluição para os nossos irmãos da África, da Ásia, que lá não tem controle nenhum. A sociedade precisa abrir os olhos e se mobilizar.


O governo Lula manteve esse modelo de desenvolvimento?
Manteve, inclusive incentivou muito. Ele entrou dizendo que faria reforma agrária e fez praticamente nada. Ele fez 10% do que foi prometido. Em relação aos fazendeiros, ajudou o investimento na produção do biodiesel, da cana, ajudou a arrumar os portos, as estradas, mantendo algumas coisas do Fernando Henrique Cardoso. Por exemplo, manteve a antiga lei Kandir, em que os produtos rurais são isentos de imposto de exportação e do ICMS, então produzem soja e não fica um tostão aqui. Só produto industrializado é que paga imposto. Então, por que a gente produz tanta soja, exporta e mantém pouca industrialização aqui?

A carne é a mesma coisa, se você industrializar o que tem no frigorífco e transformar em salsicha, linguiça, aí paga imposto. E ainda vieram os governos estaduais, acabando com o ICMS.


Agrotóxico não paga ICMS, mas medicamento paga. Carros usados na agricultura, como tratores, não pagam ICMS aqui em Mato Grosso. São um monte de benesses que os governos federal e estadual deram ao agronegócio. Para a agricultura familiar, deu um pouquinho, para não dizer que não deu nada. Deram 95% aos grandes e 5% para a agricultura familiar.


Essa assistência técnica que o governo dá para os grandes produtores de boi e soja não tem nos assentamentos rurais. O governo manteve o modelo e ampliou mais ainda com o negócio do biodiesel, do álcool, dizendo que é a energia mais limpa do mundo. É mais limpa quando está dentro do navio, pronta para exportar, pois aqui dentro o álcool é a energia mais suja do mundo.  E agora o biodiesel. Tem que desmatar, usar agrotóxico, fertilizante químico, é o que mais emprega trabalho escravo, é o que mais está matando trabalhador na zona rural, inclusive de exaustão. Polui com os detritos dessas indústrias rurais.


Nossa gasolina tem que ter 20% de álcool e se consome muito nos carros a álcool. Agora, por decreto governamental, o diesel é 5% biodiesel. E de onde vem? Se engendrou toda uma campanha para dizer que viria da mamona, do girassol, de produtos que incentivariam a agricultura familiar. Mentira, hoje, 95% vem do óleo de soja. O
Mato Grosso é um dos maiores produtores de biodiesel. Você pega o óleo de soja, que é um alimento, e transforma em óleo para ser misturado com o diesel lá em Paulínia [São Paulo]. O Lula incentivou isso. A maior indústria de biodiesel do Brasil fica aqui em Barra do Bugres e há dois anos o Lula veio aqui inaugurar. Agora já tem dezenas no país todo. Assim como o álcool, com o qual poderia se produzir açúcar e outros alimentos em vez de ser produzido para carros.

Do governo Dilma pode se esperar alguma mudança?
É continuidade do governo que prioriza o desenvolvimento industrial urbano e rural nesse mesmo modelo. Pode piorar ainda mais se passar essa reforma do Código Florestal. Não é o governo da Dilma, é de vários partidos, como foi o do Lula. Um monte de empresários que permitem e mantêm esse modelo. A gente pensou que o governo Lula fosse mudar, não digo acabar com o capitalismo, mas, pelo menos, mudar um pouco essa correlação. Melhorar a agricultura familiar, ir no sentido da agroecologia, dar o mesmo privilégio de financiamento para os grandes e pequenos produtores. Nada disso aconteceu.

Lula ampliou o sistema de crédito para a agricultura familiar. O senhor não acha o suficiente para inverter o rumo do desenvolvimento?


Ele ampliou no orçamento, mas no financeiro, quem conseguiu pegar? Grande parte dos assentamentos não tem uma legalização que pode ir lá pegar o financiamento. E se conseguir pegar, cadê a assistência técnica para ele produzir? A agricultura familiar vive um drama. Os pequenos produtores podem pegar 10 mil reais e o grande pega 10 milhões, 20 milhões. Desses 10 milhões de reais, ele vai investir oito e com os outros dois milhões, ele compra apartamento, outras coisas.


O pequeno, que pegou 10 mil reais para produzir, é com muito sacrifício, bota toda a família para trabalhar. São políticas iguais para o grande e para o pequeno — e não funciona assim. Tem de ter uma estrutura de crédito, de manejo, de assistência, que hoje não há. O grande produtor tem seus agrônomos. O pequeno, não. Fica sendo uma política mais demonstrativa, “dei tantos milhões”. Mas quantos pegaram? E os que pegaram o financiamento, quantos cumpriram aquilo? O pequeno gosta de cumprir. Os grandes não precisam, porque depois vem a anistia, eles não pagam impostos.



Fonte:
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=41835